segunda-feira, 3 de abril de 2017

Capitulo 2: O desvio

Se eu te pedisse pra me contar como foi a sua vida até os 18 anos de idade? Acredito que me descreveria meia dúzia de episódios bons e ruins. Tudo bem, essa é o conceito de vida, mas, se eu dissesse pra você que a partir de agora haverá um desvio aos 9 anos de idade, o desvio não será bom pra você, a vida que você teria não vai existir mais, como você se sente?
Pois bem,É assim que eu me sinto, e para te fazer sentir também, preciso lhe contar pequenos detalhes que eu consigo recordar.
Eu me lembro de ter ganhado um livro de colorir, fiquei tão feliz, mesmo sabendo que seria uma tarefa árdua pintar todos aqueles desenhos, o livro vinha com tantas imagens a serem completadas...
Passei o final de semana inteiro colorindo sapos, contornando gramas e decidindo a cor do cabelo dos rapaizinhos do livro.
Segunda feira de manhã, acordei cedo e já fui  em direção ao segundo quarto procurando meu livro para terminar o ultimo desenho, me espantei com várias malas fechadas espalhado pelo chão. Sabia que aquilo era estranho, não me recordo de nenhuma outra vez em que tinha visto tantas malas prontas assim.
Fiquei tão feliz por finalmente completar meu livro, queria que todos vissem o quão duro eu dei para termina-lo, então fui cobrar os parabéns que eu merecia e me deparei com meu irmão mais velho pedindo explicações sobre as malas.
"-Vamos ir pra casa da sua avó" -Disse minha mãe.
Se ela explicou mais do que isso, sinceramente, eu não me lembro.
Um almoço rápido,uma carona para a rodoviária e uma despedida simples do meu pai com um "Eu te amo tá?". Foi o que tive, rapidamente me dei conta que estava dentro do ônibus. Completamente vazio, foi divertido ter todas as poltronas vazias para pular. Então pulei em todas, uma por uma até o final do ônibus.
Queria ter a noção do que estava acontecendo no momento em que eu estava sentado na ultima poltrona, olhando para fora do ônibus deixando a rodoviária, queria ter tido a completa consciência do que eu estava deixando pra trás, queria saber que a vida que eu tinha té então não seria a mesma a partir dali, porque não houve uma reunião de família agora que realmente precisava?
Minha dificuldade de estar conectado realidade é bem agravado quando se esconde o que está acontecendo, então o mínimo que eu precisava naquele momento, era alguém me explicando em palavras que eu conseguisse entender. Mas ao invés disso o máximo que eu conseguia pedir era:
"Mãe, guarda esse livro pra mim?' Foi o que eu pedi várias e várias vezes consecutivamente pra minha mãe em casa, enquanto ela arrumava as malas.
Que ridículo da minha parte se preocupar com um livro quando seus pais estão se separando na sua frente.
Que ridículo querer que seu livro esteja completo enquanto sua família está se desfazendo diante de seus olhos.
Sentado na ultima poltrona do ônibus eu consegui ver o ônibus deixando a rodoviária, consegui ver o veiculo saindo da vaga, e um livro aberto largado numa poça de lama que segundos atrás estavam embaixo do ônibus.
Nesse momento eu chorei.
Chorei por acreditar que o livro estava guardado.
Chorei por querer acreditar que aquele livro não era o meu.
Chorei por perder algo que eu me dediquei a fazer.
Enfim,Naquele dia eu perdi tanta coisa,só não tinha a noção disso.
Agradeço muito pelo livro ter ficado lá naquela poça de lama imunda, pelo menos assim eu tive o sentimento de perca dentro de mim, não pelas razões certas, não suportaria a ideia de ter feito aquela viagem feliz.
Junto com o meu livro, ficou meu pai, minha escola, meus vizinhos, minha casa, minha vida.
A partir dali, nada mais foi o mesmo. Fomos morar na casa da minha avó, em uma cidadezinha do interior no norte do Brasil, estudei em uma escola pública de lá durante 1 ano.
Foi um choque muito grande pra mim, aquela escola cheia de crianças com sotaque diferente, correndo, brigando, batendo uns nos outros, escorregando no piso molhado do corredor, pulando muro da quadra, nada disso era familiar pra mim.
Eu perdi muita coisa junta com meu livro de desenhos e só percebi isso no momento em que me adaptava com uma vida nova.
Eu demorei a entender que aquela seria a minha escola de agora em diante, eu só tentava passar o dia lá, eu só queria que aquilo acabasse para que eu pudesse voltar para a casa da minha avó assistir desenho animado.
Demorei para me acostumar que não podia usar sandálias com calça longa.
Apanhei bastante até me acostumar que não podia passar no "corredor da morte", senão todos que estivessem lá me daria socos, nossa... Como eu apanhei....
As crianças eram maldosas, as brincadeiras e brigas estavam presentes em todos espotes da aula de educação física.
Sempre tinha alguém tentando roubar ou derrubar o meu lanche no intervalo.
Em contraste a isso, meu irmão mais velho, que estudava na sala ao lado da minha, se adaptou bem, em questão de dias já tinha um novo melhor amigo. Com quem passeava pela cidade.
Queria ter tido o mesmo, mas ao invés disso eu fiquei lá no fundo, sozinho, tentando achar graça nas piadas deles, achando pontos de conexão entre eles e eu, tentando encontrar similaridades deles comigo.
Aquilo durou vários dias, a frustração de conseguir me encaixar foi intensa. Até que um certo dia a professora de português percebeu que eu chorava durante as aulas dela.
Isso a comoveu, criamos uma rotina de conversar sempre que ela fosse corrigir atividades. Conversávamos sobre mim, sobre meu pai, sobre querer voltar para minha casa.
"Mas você for morar com seu pai, ele vai trabalhar o dia inteiro e você vai ficar sozinho em casa?" -Ela dizia enquanto corrigia.
Talvez ela tenha sido instruída pela minha mãe a dizer aquilo, já que ela tinha contato com a minha família.
Meu desajuste no colégio era nítido. As conversas de que eu chorava durante as aulas chegaram ao ouvido da minha mãe que me perguntava o porque durante o almoço, na frente de todos: meus avós, minhas tias, meus irmãos...
Era dificil dizer que eu odiava minha vida nova.
Durante a janta minha mãe me perguntava porque eu não tinha amigos, eu acreditei que o problema era meu por não ter amigos, afinal meu irmão tinha e dizia achar o máximo a vida nova.
 Meu argumento de dizer que eu não era feliz foi rompido por meu irmão dizendo que eu estava mentindo, pois volta e meia ele me via sorrindo no colégio.
Nesse ponto eu me pergunto será que sorrisos podem ser sinal de felicidade? Se eu contar uma piada pra você agora, você será feliz automaticamente? Eu bem que queria que fosse isso, infelizmente não consegui expor esse ponto de vista enquanto jantávamos, simplesmente disse:
"-Perdi a fome" e fui para o quarto.
Consigo me lembrar das feições da minha mãe na cozinha quando a deixei lá, ela não merecia essa minha atitude, mas eu também não merecia o que estava tendo ali. Ela precisava de um recomeço na vida dela ,não a julgo por isso, mas eu não precisava de um na minha.
Minha professora de português me ensinou o significado de várias palavras durante a quarta série, inclusive palavras como "perder": Deixar de possuir algo. Isso foi o que eu deixei de ter, uma vida que eu jamais saberei como é porque alguém decidiu me impor um desvio antes. Não foi minha decisão, certamente eu não teria responsabilidade de decidir por conta própria naquela idade. Talvez tenha sido o melhor pra mim, ou tenha sido o pior, mas o fato é que não deixa de ser um desvio. As suas decisões desencadeou em mim um sentimento de desajuste que talvez eu jamais consiga curar, uma sensação de não pertencer a lugar nenhum que eu carrego até hoje, uma dor de estar incompleto onde quer que eu esteja. Isso dói, dói bastante.

3 comentários:

  1. Estou passando por um momento muito difícil, eu falo com as pessoas, mas ninguém me entende. Por favor quero ir embora pra longe de tudo, não sei mais oque fazer.

    ResponderExcluir
  2. Querido Denkit! Sei que nada do q lhe disser servirá para aplacar sua dor. É possível extrair tanto do q vc narrou, mas por ora, sinto muito pelo seu livrinho. Não, sorrisos não são sinais de felicidade, muitas vezes, nem de alegria...Não foi escolha sua tudo o q aconteceu, as perdas, as frustrações, a inadaptações c a nova realidade...Nem dos seus pais acredito. As pessoas mudam, e viver com alguém que nos machuca é como viver fustigando a mesma ferida todos os dias, tentando sorrir p disfarçar a dor. A dor de uma decisão que não coube a nós se espalha para quem amamos. Infelizmente (ou não?), a vida é um permanente estado de impermanência, talvez para nos burilarmos em evolução. As cenas q vc descreve ter assistido da novela podem ter sido um sinal do q vc inconscientemente percebia, em seu lar. Estar incompleto ou não pertencer, pode estar mto mais próximo de uma expansão de consciência do q vc imagina...Desejo q vc possa reconstruir essas etapas e que perceba q se algo ainda dói é pq não coaduna c seu vddeiro eu. Que ele possa surgir entre essas brumas de dor e que vc possa pintar outros livrinhos de uma outra história. Um abraço. Melhoras.

    ResponderExcluir